
Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: "Oh Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo".
Giovanni Pico della Mirandola, Discurso sobre a dignidade do Homem
Sendo o homem um ser-inacabado, a sua pulsão originária consiste em constituir-se a si mesmo na relação que estabelece com o contexto sociocultural, em que singularmente se insere. A sua incompletude, longe de estabelecer-se como uma fraqueza ontológica, constitui, pelo contrário, o primeiro momento para a sua auto-constituição, enquanto ser-aberto ao mundo.
A referida abertura, ao dar-lhe acesso ao seu contexto existencial, permite-lhe realizar um conjunto de aprendizagens fundamentais que o vão constituindo enquanto ser. Deste modo, as experiências realizadas são particularmente decisivas para a formação da sua personalidade conforme o demonstram às diferenças cognitivas que medeiam entre as crianças oriundas de estratos sociais mais desfavorecidos relativamente ao padrão normal.
Contudo, ainda que os contextos sejam primordiais na constituição da natureza humana, não são totalmente decisivos, já que o homem, sendo um ser-projectivo, consegue relativizar o seu condicionamento às coordenadas do espaço e do tempo, fazendo escolhas existenciais que o permitem auto-determinar-se naquilo que quer ser.
Se se analisa esta temática a partir de uma perspectiva sociológica, o conceito de socialização adquire um papel fundamental na determinação dos hábitos comportamentais de cada ser humano. Pois, ao definir-se como o processo de interiorização dos modos de ser da comunidade onde está enraizado, evoca as três linhas fundamentais da antropologia contemporânea que já referimos e que definem o homem enquanto ser inacabado, projectivo e aberto ao mundo.
Dentro desta área existem dois momentos fundamentais de aprendizagem: a socialização primária e secundária.
A socialização primária, decorre na infância e na adolescência, e consiste na aprendizagem de todos os conteúdos necessários para a vida em sociedade. A família e a escola, enquanto locais privilegiados, permitem que as crianças interiorizem as regras de cortesia, os hábitos de higiene e alimentação, a linguagem e todos os modos de ser essenciais para a vida em sociedade.
E a socialização secundária, decorrendo nos estádios posteriores, consiste na aprendizagem de novos hábitos culturais para a adaptação a novas condições de vida como a entrada no mundo do trabalho, a mudança de estado civil, o desemprego e a reforma, etc.
Emanuel Santos
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